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Guerra Colonial (ensaio)

por neves, aj, em 04.09.05

... não se julgue que a posição a favor do desarmamento da população civil [houve há uns anos um referendo no Brasil]  vem de agora. Voz do Seven não pactua com armas, tem horror a armas e é contra o armamento civil, por perigoso e completamente desnecessário em todo e qualquer Estado/Nação de direito. Em livre pensamento afirma-o bem alto e nem coloca ses hipotéticos, pois é assim que pensa o seu autor que neste texto veste a pele do Neves, AJ por ser ele que tem pânico às armas, muito em parte devido a que jamais pegou numa que se preze... e tem idade para isso, digo-vos. Só não peguei porque o feliz dos acasos aconteceu e nem que fosse só por isso digo-vos que valeu a pena a Revolução dos Cravos em Portugal.
Como podem constatar, a crónica, o texto, passou a ser redigido na primeira pessoa, porque tornou-se necessário, porque as memórias de juventude afloram em catapulta e relembro aquela guerra, para mim a mais estúpida das guerras que estropiou e matou milhares de jovens, portugueses e seus irmãos africanos das antigas colónias. O meu ser estremece ao falar nisto, recorda a Escola Primária e os cânticos guerreiros d'Angola é nossa, gritarei... não me pergunteis a razão, mas as minhas entranhas parece que sentem uma necessidade enorme de serem exorcizadas de um fantasma que não tem razão de existir, porque nem fui à guerra, a essa guerra chamada de colonial. Bom, o meu corpo não esteve lá, mas digo-vos com sinceridade que também eu vivi muito intensamente essa época porque lidei diariamente com o sofrimento de uma mãe, em angústia permanente pela ausência de seu filho lá por terras do Cu de Judas, não entendendo sequer (querendo lá saber...) que interesses ele ia defender. E essa mãe em sofrimento, não se poderia alegrar mesmo que as novas vindas de África fossem boas (ou pelo menos não fossem más) porque outro filho se seguiria na linha de produção de mais homens p'ra
Angola em força, já... esse "outro filho" sou eu, este que vos fala e que pela primeira vez escreve sobre o assunto. Sem medos e talvez por necessidade e também para que os mais novos meditem. Teria eu os meus 12 anos quando tomei contacto com a dura realidade de que meu irmão, mais velho que eu 9 anos, iria "lá para fora" combater na guerra colonial. Até recordo o exacto momento... estávamos, eu e meu irmão, sob a parreira de videiras no quintal de casa em concurso de"setas ao alvo" disparadas por, nem de propósito, pressão de ar (espingarda de chumbinho) e um vizinho, passando, questiona-o sobre a vida... a vida militar certamente... meu irmão não falou, bateu com a palma da mão direita sobre o dorso da mão esquerda, uma duas vezes, em sinal inequívoco de que ia... ia embora... estava mobilizado para o Ultramar, ia zarpar para longe. Nada perguntei, mas entendi... depois havia aquele saco, verde escuro, aquela mochila onde ele apenas podia transportar o essencial cada vez que vinha a casa gozar os diasd e licença antes do embarque... e tantos que foram os adiamentos, parece que a táctica dos adiamentos era para despistar as "secretas" que pudessem informar o inimigo... eu hoje mandava-os (a eles aos coronéis ao sistema) à outra banda exigindo-lhes justificação por gozarem com os sentimentos de um mãe, de uma família... de um Povo.

Meu irmão nunca soube das lágrimas que minha mãe derramava quando ditava os aerogramas (que tinham de ser comprados... 20 centavos) que eu escrevia e que direccionava para o soldado condutor número não sei quantos barra 67 p'ro SPM 5826 ou 5126, não interessa. Nessas cartas falava-se de tudo um pouco, desde o Sporting dele ao meu Benfica que lhe ganhava, passando até pela gata que tinha ido parir aos sacos dos farrapos que o meu pai trazia da Alfaiataria e depositava na loja de arrecadações... o que interessava era levar até ao Cuango, Norte de Angola, notícias d'Aquém-Mar que o entretivessem e jamais que lhe pudessem aumentar os problemas que já tinha.

A chegada de meu irmão a Lisboa,ao cais de Alcântara foi triunfal... não para ele que não teve direito a medalha de mérito, pois estas estavam guardadas para aqueles que tinham perdido um braço ou uma perna ou para o peito dos seus familiares mais próximos que recebiam a condecoração de semblante mais carregado que o luto que vestiam.
O triunfo foi meu
porque pela primeira vez fui a Lisboa, à capital do país...
porque vi nascer o dia ao lado da majestosa Ponte sobre o Tejo (hoje 25 de Abril na altura chamada de Salazar) tendo ao largo, naquele imenso Tejo de luzes reflectidas, o iluminado navio que trazia as tropas...
porque delirei com as manobras do atracar do navio (de nome Uíge se não me engano)...
porque fiquei de boca aberta com a visão de centenas, de milhares de homens todos os iguais a acenarem, menos um que não lia o letreiro Santa Comba Dão...
Que maior riqueza poderia ser dada a um jovem daquela época que nada conhecia, apesar de ter crescido e estava agora com 15 anos, pois tudo isto já se passa depois do meu aniversário de Novembro... era Dezembro, dia 22 ou 23 talvez.
Jamais esquecerei, também, a azáfama do desembarque onde os abraços eram temperados pelas saborosas lágrimas das mães,namoradas e esposas... (outras) mulheres, talvez madrinhas de guerra de homens que nunca tinham visto, pesquisavam de foto em punho p'los seus queridos que tardavam em encontrar... mas "tal como bela sem senão" o meu encantamento ficou severamente manchado para toda a minha vida e me criou grande sentimento de revolta por ver do alto da varanda do cais de Alcântara o despudor de descarregarem como mercadoria dezenas e dezenas, talvez centenas de urnas contendo os restos mortais de homens militares... pergunto-me hoje se esta manobra feita em plena luz do dia e à vista de quem espreitasse seria propositada.
Comecei por falar de desarmamento, viajei à guerra, à guerra que eu vivi e afinal não senti (na pele) graças aos deuses da
Liberdade... feliz me sinto por ter acabado...louvemos por, agora reunidos em comunidade, todos estarmos em Paz, nós portugueses e os irmãos africanos, porque estremeço só de pensar em situação imaginária, mas não irreal, que por teias tecidas p'lo diabo do destino eu me encontrasse um dia, em mata qualquer africana, de arma na mão frente a frente com neto de meu avô paterno que, emigrante por terras de Angola, deixou (também) prole afro-descendente.

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publicado às 11:30




  
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  • neves, aj

    Este Salazar nada tem a ver com o "teu amigo".

  • neves, aj

    O que andas a ler... "obrigas-me" a revisitar o pa...

  • Rosa Lychnos

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