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Parlamento

por neves, aj, em 31.03.12

[mui provavelmente o único Parlamento do mundo que do outro lado da rua tem uma esplanada]

... no início era a Taberna do Aníbal ou simplesmente O Aníbal, porque Aníbal a fundou. Fazia paredes meias ligada por uma estreita porta com pequena mercearia [loja de secos e molhados em perspectiva brasileira] onde a população se podia abastecer das necessidades do dia-a-dia, cento e vinte e cinco gramas de café de mistura, um quarto-de-quilo de açúcar, dez tostões de colorau. Eram tempos em que não havia o vício [nem a obrigatoriedade] de comprar por atacado. A Tasca passou a ser conhecida por Manel do Aníbal quando o patriarca se finou e o filho Manuel, actual proprietário, tomou a seu cargo o leme de um dos mais emblemáticos espaços de comes e bebes da ditosa Mãe-terra de Santa Comba Dão. Com a Alvorada de Abril foi baptizada [também] de Parlamento. Dos padrinhos que lhe deram este último nome não reza a História e as razões de tão elevado epíteto são uma incógnita, já que é sabido que os frequentadores não são eleitos [a entrada é livre, embora a presença de representantes do sexo feminino seja praticamente nula] e não consta que se discuta política de interesse para o país ou região [tomara]. Com toda a certeza que ganhou a denominação porque por lá fala-se mais do "disse que disse", critica-se por dá cá aquela palha sem se apresentarem soluções práticas. À semelhança de salão de barbeiro e de cabeleireiro de senhoras que se preze, é local onde se toma conhecimento das novidades do pequeno burgo. Vem a propósito lembrar que o espaço até ganhou o estatuto de local de estilo [lugar público de informação à população] onde costumam ser afixados os óbitos ocorridos na freguesia. Como não podia deixar de ser, neste Parlamento o futebol é tema forte de conversa e discussão e vem a propósito recordar que nos tempos áureos dos relatos via rádio a Tasca do Aníbal era ponto de reunião dos adeptos das várias cores clubísticas. Ainda o é, só que agora é a televisão a roubar a cena.

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... a sandes [sanduíche] de bacalhau frito encapado em farinha será o petisco mais celebrizado pela Tasca do Aníbal. Acompanhada por meio quartilho [naquele tempo cerveja era bebida de luxo] era vendida a preços populares e alegrava o estômago de operários acabados de sair dos seus empregos e também dos empregados do comércio montado nas redondezas que, numa corrida, roubavam quinze minutos ao patrão para retemperarem as forças a meio da tarde de trabalho. Tempos em que o comércio local era um facto e ainda não tinha sido absorvido pelas modernas grandes superfícies, se mandava colocar uns fundilhos nas calças rasgadas e os parafusos eram vendidos à unidade. A posta de bacalhau granjeou fama de ordem tal que a equipa de futebol do Sporting da Covilhã sempre que se deslocava para os lados de Santa Comba fazia por lá paragem obrigatória. Vem-me à memória a peregrinação de muitos para ir admirar os craques, principalmente dos mais novos como eu, que apesar de nunca termos visto jogar sabíamos que eram bons executantes, afinal o Covilhã disputava os Nacionais da 1ª ou 2ª em tempos que estas divisões eram muito mais valorizadas em relação às demais.
Aproveitando a onda das recordações, registo na minha memória a construção do edifício que alberga hoje o actual Parlamento, seria em meados dos anos 60 do século passado. Aliás, em página própria [um clique na foto publicada] partilho com todos vós uma foto dessa altura que me foi oferecida pelo Sandro Branquinho Matos há já uns tempos. É facto que a foto nos mostra apenas trecho da Alexandre Herculano mas são bem visíveis pranchas de madeira do lado esquerdo que indicam obra em construção mesmo em frente à antiga Praça, afinal o mercado que naquela altura servia a população santacombadense e onde se comercializavam todos os produtos agrícolas e peixe, nomeadamente a celebérrima sardinha, patinho feio da alimentação desprezada pelas bocas mais endinheiradas de então e hoje, sabe-se, uma fonte deómega-3, um ácido graxo que diminui o nível de triglicerídeos e colesterol LDL [ruim] no sangue. Também naqueles tempos se serviam refeições n' O Aníbal e a memória lembra-me outro iguaria que afamou a casa: grão com bacalhau cozidos, salpicados com uma salada de cebola e salsa picadas e temperados com azeite e vinagre.
Até parece que na Tasca apenas se comia e bebia [e conversava] mas não, também se vendia cultura e de borla: acredito que ainda hoje se mantenha mas sempre me lembra o Jornal de Notícias [posteriormente A Bola e também o Record] emoldurar o cantinho do balcão onde os interessados podiam estar a par do que se passava no país e no mundo e adquirir conhecimentos.
A viagem está a acabar, mas ainda há tempo pra alegrar as memórias dos então mais novos trazendo-lhes à lembrança os célebres bonecos da bola. Custavam um tostão cada e embrulhando o rebuçado [bala em perspectiva brasileira], antes torrão de açúcar, vinha a imagem de um futebolista. A febre da colecção espalhava-se entre nós e era vermo-nos num cantinho qualquer a exibir as cadernetas, a fazer troca das figuras repetidas e a jogar o "par ou ímpar", jogo didáctico que nos ensinava a distinguir um número par de um número ímpar. Curiosamente dezenas de anos depois, já no tempo da vulgarização das máquinas de calcular e do aparecimento do computador, valorizei enormemente este jogo ao constatar a dificuldade de alguns dos meus alunos em fazer a distinção entre pares e ímpares.
O progresso chegou e houve necessidade de modernização. Hoje, O Manel do Aníbal é espaço fortemente iluminado e amplo com apresentação de "café", provavelmente sem calendários com foto de gajas peladas, mas acredito que continuam o bacalhau e a sandes de queijo à Manel [superiormente bem servida a preços módicos]. Fica na memória o espaço exíguo, as pedras-mármore carcomidas pelo tinto e os placares na parede. Do outro lado da rua, na antiga Praça [oficialmente Largo Oliveira Salazar, mas jamais conhecido assim pelo Povo] montou-se agora uma esplanada onde teimosamente se fazia parque de estacionamento, mas não se receie por hipotéticos atropelamentos visto que o trânsito automóvel na Alexandre Herculano desapareceu. Já não era sem tempo, diga-se em abono da verdade, e assim se prova que o progresso também é capaz de mudar as mentalidades.
Finalizo com um abraço a todos os parlamentares [muito em especial ao presidente sr Manuel, homem amigo que um dia destes fará parte dos Rostos de Santa Comba Dão] e com os tradicionais agradecimentos aos que me permitiram a presente entrada com o envio das fotos que a embelezam: à amiga Paula pela captação das fotos mais modernas e ao Luís Pedro pelo envio das mais antigas [a pedido da Paula, saliente-se], fotos estas que me inspiraram e me permitiram viajar no tempo e conhecer as novas instalações.




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  • neves, aj

    Este Salazar nada tem a ver com o "teu amigo".

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